Adoro esta fotografia. Faz-me lembrar uma imagem que vi num banco de jardim, perto de Biarritz, onde estavam dois namorados encostados, cabeça no ombro a ler.
Liam os dois o mesmo livro e na altura passei de carro com amigos e comentámos a imagem por nos parecer a representação do amor. Giras, as imagens que gravamos...
Agora que já voltei ao continente e me sinto outra vez em casa; agora que estou mais tranquila e livre de embaraços informáticos, lembro-me do casamento deste fim-de-semana, cujo filme revi mentalmente de olhos fechados enquanto sobrevoava o oceano, e penso que nunca tinha ouvido os noivos acrescentarem uma palavra à cerimónia em que se declaram dispostos a amar e a permanecer fiéis até ao fim dos tempos.
A palavra que não consta do texto convencional da cerimónia faz toda a diferença. Não só pelo sentido da palavra mas pela intensidade e verdade com que foi dita por um e repetida pelo outro. Adorei!
Qual é a palavra? "Perdidamente". Ou seja os noivos acrescentaram a palavra "perdidamente" naquela parte em que um promete ao outro amá-lo e ser-lhe fiel na alegria como na tristeza, na saúde como na doença.
Ouvir a Mariana e o Pedro, que conheço bem, declarar com paixão um ao outro que prometem amar-se perdidamente até ao fim dos tempos não é apenas uma coisa bonita de se ouvir. É comovente e transformador porque revela o amor que construiram até aqui e mostra a maneira como querem continuar a amar-se. Tão ou mais importante que isto é a certeza que todos temos de que é exactamente isso que vai acontecer pela vida fora.
Basta conhecer um e outro para saber que sim, e é esta certeza que nos enche a nós de certezas. Sobre o amor e sobre a vida, quero dizer.
Dia de praia. Pais e filhos à beira-mar. Aparentemente mais uma cena banal de uma família normal. Um tempo em que nada de extraordinário se passa, em que a vida apenas acontece.
Parece um momento sem história ou uma rotina de quem espera o Verão mas se olharmos com atenção conseguimos ver mais que isso.
Talvez o amor, quando ele não se mede pela intensidade mas apenas pela proximidade. E pela cumplicidade.
Na entrada da igreja estenderam, como sempre, um longo tapete carmim mas, desta vez, o tapete assentava numa rampa de madeira cuidadosamente construída para o momento. O noivo chegou primeiro, como todos, e subiu pela rampa de madeira. Avançou para o altar sem hesitações, impecável no seu fraque, ar de rapaz feliz. Era o meio da tarde e a luz começava a quebrar. Sentado na sua cadeira de rodas, esperou tranquilamente aquela eternidade que parece menos que um breve instante quando existe a certeza íntima de que o melhor está para acontecer. Vinda do alto, uma luz amarela coada de uma poeira fina e dourada inundava o lugar onde ele esperava.
Ia cumprimentando os que chegavam com um sorriso terno mas percebia-se que estava abstracto. Precisava daquele silêncio e daquela espera para recordar coisas da sua vida passada. O coro ensaiava as últimas músicas num tom vibrante mas percebia-se que ele não ouvia nem via verdadeiramente ninguém. Sorria à direita e à esquerda com ligeiros acenos mas permanecia calado, absorto em pensamentos e memórias. Estava lindo, coberto por aquela luz da tarde.
A noiva entrou pelo braço do pai e a música elevou-se solenemente no ar. Ele rodou a cadeira para a ver enquanto ela avançava devagar, distribuindo sorrisos cúmplices. Demorou a chegar ao altar porque a igreja é muito grande e estavam ali muitas pessoas muito queridas.
A noiva irradiava felicidade, luz e alegria. Paz e certeza também. Estava linda.
A cerimónia foi inspiradora e emocionante para todos os presentes. Houve lágrimas e palavras comovidas mas também silêncios profundos. Sagrados e cheios de mistério.
No fim o tapete carmim ficou cheio de arroz e pétalas de rosa, como acontece sempre. A única coisa diferente, à entrada e à saída, era aquela rampa de madeira cuidadosamente construída para celebrar um momento que nenhum de nós vai esquecer nunca mais.
A Festa
E depois a sombra foi pesando devagarinho sobre os ombros das senhoras vestidas de festa e um arrepio de vento anunciou a noite. Os homens permaneceram nos jardins de buxos e cedros até mais tarde porque não sentiam frio. Algumas senhoras correram a juntar-se em pequenos grupos à volta do lago de pedra antiga com musgo, água verde e peixes encarnados, quando um rapaz caiu lá dentro todo vestido. Entre gargalhadas e olhares mais ou menos aflitos, ajudaram o rapaz a sair da água. O pai veio, cobriu-o com o seu próprio casaco e levou-o pela mão por entre as árvores e as sombras oblíquas.
E quando já era noite escura eles inauguraram o baile e todos vimos uma dança que nos pareceu um filme maravilhosamente filmado num compasso lento, demorado, terno e eterno.
Ele e ela sentados na cadeira de rodas, abraçados a dançar esquecidos de nós, esquecidos do lugar e do tempo, numa intimidade feita de uma cumplicidade e uma felicidade inteiras, sem questões nem razões.
E foi aquela dança inaugural que nos encheu a todos de certezas sobre a vida e sobre o amor.
O Amor
A propósito do amor, dos seus caminhos e armadilhas, vale a pena citar Zygmunt Bauman, polaco, 82 anos, sociólogo de referência, autor de livros incontornáveis como Amor Líquido, Ética Pós-Moderna e A Sociedade Sitiada. Zygmunt é um profundo conhecedor da realidade contemporânea e passou a vida a analisar o modo como nos relacionamos, como nos encontramos e nos perdemos. Como nos amamos, em resumo.
Numa era que ele classifica de ‘modernidade líquida’ a nossa capacidade de amar está permanentemente ameaçada e todos nos sentimos cada vez mais inseguros e incapazes de criar laços profundos e duradouros, seja nas relações amorosas, familiares ou outras.
E é porque ele escreve de maneira sábia e profunda sobre a ‘misteriosa fragilidade dos laços humanos, os sentimentos que esta fragilidade inspira e a nossa contraditória necessidade de criar laços e, ao mesmo tempo, mantê-los flexíveis’ que o testemunho da Carmo e do Bento, no dia do seu casamento, comove profundamente. Porque é de tal maneira forte que contraria a lógica moderna dos “relacionamentos que parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear” mas, também fáceis de descartar.
O noivo
Bento Amaral, 38 anos, ficou tetraplégico aos 25 a fazer uma carreirinha no mar. Era um velejador muito dotado e um desportista nato. Após o acidente, que mudou radicalmente a sua vida e o deixou completamente dependente (só para dar um exemplo entre mil, todas as noites precisa de ser virado na cama pelo menos três vezes porque não se consegue virar sozinho) dizia eu que o Bento percorreu um longo e doloroso caminho sem nunca quebrar nem desistir. Concluiu o curso de engenharia alimentar, foi para Bordéus, especializou-se em vinhos e é, há anos, chefe de Câmara dos Provadores do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto. Contra todas as expectativas iniciais, Bento recuperou muitos movimentos dos braços e hoje em dia tem uma notável amplitude de gestos e uma precisão muito afinada que lhe permite virar as páginas do jornal, comer sozinho e segurar nos copos de pé alto nas provas de vinho.
A extraordinária evolução pessoal e profissional do Bento foi possível graças ao apoio incondicional da sua família e amigos. Bento fez conquistas em toda a linha, manteve a actividade desportiva e atingiu níveis nunca sonhados. Recordista mundial de velocidade na neve, é também o actual campeão do mundo de vela adaptada. Tudo feito sempre com uma confiança, uma tranquilidade e uma liberdade admiráveis. Isto porque tecnicamente ele é e continuará a ser completamente dependente dos outros para a sua vida diária.
Apaixonado pela vida, Bento revela em tudo o que faz e diz uma profundidade, uma sensibilidade e uma alegria espantosas. A sua condição e a forma como transcende as suas limitações fazem dele um homem apaixonante. E foi tudo isto que prendeu a Carmo que, não tendo nenhum handicap, se apaixonou perdidamente pelo homem mais livre e mais inteiro que conheceu na vida e, com uma coragem e uma alegria invulgares, construiu para si e para ele uma felicidade que ainda agora começou mas já nos contagia a todos.