Sábado, 28 de Março de 2009
Carta ao Presidente da Câmara de Viseu

 

(crónica escrita para o jornal Público de ontem)

 

Visitei recentemente o CAT, Centro de Acolhimento Temporário

para bebés e crianças em risco que foram retirados às famílias

por terem sido vítimas de maus-tratos, abusos, negligências ou

abandono, e conheci nesta pequena-grande casa em Viseu uma

equipa extraordinária dirigida por Paula Menezes que me abriu a

porta com uma das crianças ao colo, com a naturalidade que só

as mães têm com os seus filhos. Paula Menezes não teve filhos

mas conhece cada uma das trinta crianças como se fossem suas.

 

 

No dia em que visitei o CAT uma das crianças estava mais chorosa

e como também é uma das mais problemáticas, com uma história

de vida terrível, Paula dedica-lhe mais atenções porque sabe que é

disso mesmo que precisa para se sentir amada e acolhida no sentido

mais profundo e radical do termo. Esta criança tinha pouco mais de dois

anos e foi abandonada pela mãe que, pouco tempo depois, abandonou

um segundo bebé, que também já dorme num dos berços deste berçário.

 

 

 
Conheci a instituição de uma ponta à outra, ouvi as histórias de
algumas crianças e passei tempo com elas. Por razões óbvias,
tudo o que vemos e ouvimos dentro de casa não pode ser contado
cá fora mas posso garantir que foi um CAT que me comoveu muito.
E conheço muitos, há muitos anos... Comoveram-me os bebés que
chegam com marcas, cicatrizes e sinais de desamor (para não falar
em abuso, que é obviamente a palavra mais certa); comoveu-me o
olhar de um deles que está cego e procura incessantemente a luz
com os olhos que não param de mexer; comoveram-me os da sala
dos dois anos todos ordeiramente sentados nas suas cadeirinhas
à mesa prontos para almoçar (um deles tem Trissomia 21, outro é
paraplégico e outro ainda tem uma deficiência mental que parece
ligeira mas pode ser grave); comoveram-me os dos 4 e 5 anos a
dormir nas suas caminhas, uns já acordados no fim da sesta mas
obedientes sem sair da cama antes de alguém os ir chamar e,
finalmente, comoveram-me os dos 6, 7 e 8 anos a brincar na sala
luminosa ao fundo da casa, onde funciona o único recreio do CAT.
 
 
Se sublinho a maneira como toda esta realidade me tocou é
porque, insisto, conheço muitas instituições desta natureza
e com esta vocação, e esta é seguramente uma das mais
familiares de todas. A casa é uma verdadeira casa, cada quarto
foi decorado com simplicidade e muito bom gosto, nos cantos e
recantos há luz e tranquilidade, nas salas há conforto e respira-se
uma atmosfera de intimidade e aconchego. E note-se que falo de
uma casa de família com 30 filhos, alguns deles doentes, outros
deficientes, e todos com um passado marcante, inquietante e, em
casos particulares, trespassado de episódios aterradores que nunca
saberemos ao certo se serão apagados da memória.
 
 
Nas casas das famílias ditas normais não há trinta filhos à mesa,
trinta crianças com menos de 10 anos todas a precisar às mesmas
horas de biberons e papas, de fraldas e banhos individuais, de colo
e mimos ao mesmo tempo. Para nós, que não vivemos esta realidade,
é impensável imaginar a lendária ‘síndrome do fim do dia’ (a hora a que
todas as crianças se tornam birrentas, choram de exaustão ou requerem
mais atenções) numa casa com tantos bebés e crianças.Mas eu, que estive
nesta e noutras casas parecidas, posso assegurar que há muitos choros e
muitos pesadelos mas também muita arte, paciência e carinho para manter
a ordem e a alegria. E essa é, também, a verdadeira surpresa que encontro
neste e noutros CATs. Se falo deste é porque o achei particularmente bonito
e familiar. O único detalhe que magoa no CAT de Viseu é ver que todas estas
crianças são obrigadas a brincar dentro de casa por não poderem aproveitar
o imenso terreno exterior que existe à volta da casa e dava um óptimo recreio!
 
 
Se não fossem dois enormes tanques de pedra que lá estão, cheios
de água, as crianças poderiam brincar livremente por ali. Consciente
de que uma criança se afoga em três minutos e que a equipa do CAT
é pequena e não tem capacidade para vigiar um recreio de 30 miúdos
em corridas e brincadeiras lá fora, com o perigo real dos dois tanques,
Paula Menezes criou alternativas dentro de casa. Mas é pena. Daí esta
minha carta aberta ao Presidente da Câmara de Viseu no sentido de lhe
expor uma situação que se resolve em dois tempos, sem grandes gastos. 
 
 
 
Para que aquelas crianças não tenham que estar sempre a ver a
a rua através da janela e para que possam viver com mais alegria
e liberdade basta esvaziar a água dos tanques e enchê-los de areia
ou de terra. Apenas isto. Será possível, Sr. Presidente? Obrigada.
 
publicado por Laurinda Alves às 10:24
link do post | comentar | favorito
12 comentários:
De Augusto Küttner de Magalhães a 28 de Março de 2009 às 12:16
Já tinha lido ontem no n/ Público, espero qe o Presidente também leia o mesmo jornal....se o faz tem bom gosto...
De claudia sofia a 28 de Março de 2009 às 15:47
Cara Amiga Jornalista Laurinda Alves,
Gostaria de entrar em contacto consigo sobre esta carta que escreveu.
Sou de Viseu e administro uma publicação periódica.

contacto: madeinviseu@gmail.com

Sinceros Parabéns pela sua carreira e principalmente pela sua atenção a casos deste género.

Cumprimentos beirões
De Rui G R C a 30 de Março de 2009 às 00:27
Cara Dra. Cláudia,
O mundo é muito pequeno e de facto é uma surpresa saber que também está interessada neste assunto focado pela Laurinda Alves. Gostaria também de lhe falar sobre este tema. julgo que poderei acrescentar alguma informação complementar.
Cumprimentos
De silvia a 28 de Março de 2009 às 16:34
Boa tarde querida Laurinda,
ficquei comovida com este post....
Um beijo grande.
De Céu Menezes a 29 de Março de 2009 às 13:55
Estimada Laurinda,

Permita-me este tratamento informal. Apenas umas breves palavras para agradecer toda a divulgação que tem feito sobre as mais diversas situações por onde tem passado dando conhecimento e voz a quem necessita. E por todo País encontramos muitas pessoas que no seu anonimato e em condições adversas conseguem ‘milagres’ dando muito de si através de um trabalho humanitário nas diversas áreas onde se inserem. A sua ‘volta a Portugal’ é disso testemunho e que tenha muitas bênçãos para realizar os objectivos que prossegue e nos quais acredita. Precisamos de pessoas com determinação, Humanismo e convicções que sabem por onde querem ir…. Eu funciono como uma espécie de divulgadora da informação que vou recolhendo e dando conhecimento à minha irmã. Como sabe para além do trabalho ‘interno’ com as crianças (22 crianças) há todo um outro trabalho que com elas se liga: idas aos Tribunais, orientação de estágios, acompanhamento dos familiares e a ida ao terreno para ver as condições em que os mesmos se encontram, etc. Tudo isso retira tempo para outras coisas e, por isso, acabo por colocar a mana informada das notícias que vão surgindo. Tenho como ponto de apoio e de informação os jornais que vou lendo e os blogs por onde vou passando o meu olhar. Sei pela minha irmã que toda a equipa ficou sensibilizada pelas bonitas palavras que proferiu sobre o Cat- Viseu servindo de estímulo para abraçar esta causa com maior garra e persistência. Assim como ficaram também sensibilizadas com toda a comitiva que acompanhava a Laurinda pela sua simplicidade e carinho demonstrado.

Com os melhores cumprimentos,
Céu Menezes
De Rui G R C a 29 de Março de 2009 às 22:44
Li comovido a sua brilhante carta ao presidente da Câmara Municipal de Viseu. Emotivo porque sou pai adoptivo de uma daquelas crianças que já esteve naquele fabuloso CAT Viseu. Apelo aos responsáveis para não ficarem indiferentes a tão pertinente questão levantada pela autora do texto.
Um Beijo
De Cristina a 29 de Março de 2009 às 23:27
Tenho um filho que viveu no CAT a que se refere o artigo. Confirmo que felizmente ele guarda no coração o "calor" que lhe foi dado nessa instituição.
Este comentario permite-me agradecer, em nome de todas as crianças que o destino conduziu até ao CAT, o facto de lhes ensinarem a amar. E recordemos, só se aprende a amar recebendo amor.
De silvia a 30 de Março de 2009 às 09:52
Durante pouco tempo, com grande pena minha, fiz voluntariado nesta instituição e posso confirmar que o que reina é o amor. As crianças são um doce e aceitam-nos como somos e com o que lhes podemos dar, o espaço está pensado de forma a criar um lar e a Dra. Paula é uma benção e uma força maravilhosa. Que bom que lá foi. :)
De Daisy a 2 de Abril de 2009 às 17:25
É impressionante mesmo... não percebo como é que algo tão cruel pode acontecer tão frequentemente, como é que aqueles que supostamente deveriam ser Pais e protectores das crianças, desprezam-nas e maltratam-nas e deixam-nas praticamente á sorte no mundo... é incrivel a falta de sensibilidade que a maioria das pessoas revela, e há coisas chocantes como esta, nunca perco a capacidade de me surpreender. Enfim... tudo seria tão diferente se cada uma dessas crianças tivesse um pai ou mãe só para eles, mas já que as coisas são assim ainda bem que existem pessoas dispostas a ajudar e de bom coração.
Desejo muita sorte e que o sr presidente não faça ouvidos de mercador, como já está habituado...
De Paulo Coelho a 12 de Outubro de 2010 às 22:54
Cara Laurinda Alves
Tomei a liberdade de colocar o link do seu blog na nossa modesta pagina do CAT

http://www.facebook.com/?sk=messages&tid=1400675508182#!/pages/CAT-Centro-de-Acolhimento-Temporario-de-Viseu/100733843326488

Assim o seu texto será lido por mais pessoas dispostas a ajudar-nos. Espero que nao se importe.

Obrigado
Paulo Coelho

De Filipa Bexiga a 5 de Janeiro de 2011 às 13:09
Cara Laurinda Alves:

Venho, em nome da Directora do Cat de Viseu, e porque a mesma não tem oportunidade de a contactar via internet, comunicar-lhe que os projectos do Cat continuam em andamento, e transmitir-lhe que a contactou via telemóvel. No entanto, tem receio que o número já não se encontre activo e gostaria de a poder contactar assim que existirem projectos concluídos.

Obrigada,
Filipa Santos Bexiga (voluntária)

Comentar post

.pesquisar
 
.tags

. todas as tags

.posts recentes

. MUITO OBRIGADA A TODOS PE...

. CURSOS DE COMUNICAÇÃO NO ...

. Curso de Comunicação adia...

. Se tiver quorum ainda dou...

. O BENTO E A CARMO HOJE EM...

. HOJE NO PORTO: SOBREVIVER...

. MÃES QUE NÃO CHEGAM A VER...

. Esta miúda vai longe!

. Alegria!

. Ladrões e cavalheiros

.arquivos
.mais sobre mim
.subscrever feeds