Sábado, 4 de Outubro de 2008
As minhas crónicas do Público ontem

 

 
Um almoço
 
Flores frescas nas jarras, compradas a meio da manhã num dia de sol e céu azul, já com aquele sopro do Outono. Um vento leve que toca nos ombros, que levanta o cabelo quando dobramos as esquinas da cidade e que faz com que as folhas que se desprendem das árvores não caiam logo no chão.
 
Na loja das flores há um balcão de pedra em xisto preto cortado aos rectângulos largos, onde se pousam os ramos entre tesouras e fitas.A senhora de avental tira os espinhos das rosas e corta-lhes os pés com gestos rápidos e clics metálicos. Depois embrulha tudo em papel pardo. As flores ficam muito melhor naquele papel do que no celofane enfeitado das floristas de montra a dar para a rua.
 
Em casa separo ou junto as flores conforme as cores, e disponho as jarras em cantos e mesas que apanham sombra, porque as janelas estão sempre abertas para entrar mais luz e calor.
 
Somos seis à mesa para almoçar num dia aparentemente banal. Nem todos se conhecem mas cada um conhece pelo menos outro. Gosto de pontes e de encontros. Chegam à hora combinada e as conversas evoluem primeiro entre a sala e a varanda, onde as vozes ficam mais alegres e descombinadas.
 
Quando nos sentamos há um breve silêncio inicial, sagrado e selado com palavras adequadas.
 
Os telemóveis ficaram desligados dentro do bolso dos casacos arrumados noutra ponta da casa. A conversa correu livre e animada, sem quebras nem hesitações, numa confiança tal que ficou logo tecida uma cumplicidade para a vida, numa intimidade invulgar mas de certa forma anunciada.
 
Aqui e ali foram tocados patamares mais elevados do que é habitual em almoços do dia, onde tudo acontece a correr e as derivas resvalam fatalmente para a crise económica ou vão bater nos políticos e nos enredos partidários. Sem pressas mas com horas marcadas a seguir, todos nos deixámos ficar como se tivéssemos todo o tempo do mundo.
 
E foi nessa espécie de embalo que nos demos conta que já passava das quatro da tarde. E foi nesse tempo demorado, sem tempo, que reparei que todos os que estavam sentados à minha volta tinham olhos limpos, transparentes. Falo daquela transparência brilhante e rara que revela sempre uma alma lavada.
 
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Um lanche
 
Dias antes do almoço, um lanche no Porto, no Club Inglês. Uma tarde igualmente luminosa mas sem vento a trespassar as árvores seculares e sem fazer mexer as pétalas muito quietas das flores plantadas e cuidadas por mãos fortes de homens que ajoelham na terra.
 
Quando cheguei, a minha amiga estava a ler. Não me viu porque estava voltada de costas para a entrada. Tinha chegado primeiro e já tinha encomendado scones e chá para as cinco da tarde. Em ponto.
 
Ficámos por ali em conversas avulsas entre risos e surpresas de agora, contadas como se fossem segredos antigos. Somos de gerações diferentes mas quando estamos juntas temos exactamente a mesma idade. Não consigo sequer lembrar-me que ela podia ser minha mãe. E podia.
 
Uma e outra guardámos a tarde para este encontro e, por isso, não houve questões com horas. Olhámos para o relógio apenas duas vezes: uma para conferir a combinação feita com outra amiga que chegaria pelas cinco e, mais tarde, para acertar a entrada com o quarto deste círculo íntimo, que ficou de aparecer pelas seis.
 
Às cinco chegou a amiga que podia ser minha avó mas também é como se fosse minha irmã e as conversas abriram com a mesma leveza com que se abre um leque de senhora na ópera. A música mudou e o filme da tarde também. Uma e outra são mulheres que atravessaram o século sempre à frente do seu tempo e continuam a abrir caminhos aos outros. Uma numa versão mais literária, outra mais psicanalítica, mas ambas com a mesma poesia e a mesma leveza na vida.
 
 
Licenciadas em Filosofia, falam de Espinoza com a mesma naturalidade com que comentam os acontecimentos do dia ou pedem manteiga em vez de doce para os scones. Não se levam demasiado a sério e é isso que faz delas mulheres sem idade.Por mim ficava ali com elas até ao anoitecer e depois montávamos três tendas, como se diz nas Escrituras.
 
Passava das seis quando chegou ele, o único homem entre três mulheres, e se apresentou com o sorriso de sempre e o olhar vibrante do costume. Também ele tem olhos limpos, transparentes, dou-me conta agora que escrevo. E também ele marca os outros pela maneira como olha e fixa o essencial.
 
Sentado na sua eterna cadeira de rodas é como se tivesse chegado a andar pelo seu pé. Se um dia se levantar e caminhar não me espanto porque é como o vejo: um homem com passo firme, que conhece a terra que pisa.
 
E foi quando finalmente ficámos os quatro à volta da mesa que o tempo parou. À nossa volta cresciam as sombras e o mundo cobria-se de escuro. Antes de ficar noite acendeu-se no céu uma luz púrpura ardente colada ao fio do horizonte e foi essa luz que celebrou o entardecer de um dia que nunca há-de ter fim.
 
(o lanche foi com a Zilda Cardoso, a Maria Angélica Andresen Castro Henriques e o Bento Amaral)
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Um projecto
 
Um barco grande, todo branco, muito comprido e elegante chegou recentemente à baía de Cascais, vindo da Nova Zelândia. Dá-se por ele e apetece chegar a ele. É um Maxi Catamarã de 102 pés com um palmarés notável, construído há mais de 20 anos pelo lendário Nigel Irens, o Philippe Starck dos barcos, por assim dizer.
 
Campeão do mundo, recordista de velocidade no mar e várias vezes premiado por proezas fabulosas contadas por velejadores oceânicos, ficou em segundo lugar na Oryx Quest em 2005 (regata à volta do mundo) e é um barco que mantém a sua integridade estrutural. Ou seja nunca virou no mar apesar da velocidade alucinante que atinge (um verdadeiro TGV que pode fazer 900km num dia!) e apesar de enfrentar ventos desencontrados em mares desordenados que quebram mastros e afundam embarcações porventura tão estáveis como esta.
 
Considerado o Maxi Catamarã com mais gabarito do mundo, está em Portugal a preparar-se para uma competição oceânica de circumnavegação que vai acontecer daqui a meses. Neste tempo do meio a tripulação vai afinando técnicas e ensaiando tempos mas, também, apurando (ou depurando, quem sabe) quem vai e quem fica em terra.
 
Gonçalo O’Neil, 42 anos, actual skipper, velejador sábio e experiente que já completou duas voltas ao mundo e obteve vários recordes a bordo deste barco, está neste momento a formar uma equipa totalmente portuguesa misturando velejadores novos e ‘antigos’, numa estratégia que pretende despertar o interesse pela vela oceânica nos jovens.
 
Esta semana estive a bordo do Maxi Catamarã num entardecer de sonho em que o Gonçalo e o Mário Sampaio, dois elementos inaugurais desta tripulação de excelência, falaram sobre os projectos do próximo ano neste barco. Fiquei a saber que a prova de circumnavegação vai ser o culminar de outras provas a disputar ao longo dos próximos meses.
 
E percebi que a campanha deste e de outros barcos inscritos nesta odisseia incluem um projecto educativo que envolve escolas e alunos.Ou seja nos próximos tempos haverá disponibilidade para receber gratuitamente crianças e adolescentes com tempo para explicações técnicas, elaborações teóricas e experiências mais ou menos radicais.
 
Termino com um episódio que envolve o dono do barco, Tony Bullimore, velejador inglês de quase  80 anos, conhecido pelas suas proezas e pela qualidade dos seus barcos mas, acima de tudo, por ter sido dos raros homens que sobreviveram cinco dias e cinco noites dentro de água no Pacífico Sul, a duas mil milhas náuticas de terra, ao perder a quilha da sua embarcação.
 
O barco de Tony virou e ele ficou mergulhado até ao pescoço naquela bolha de ar que fica dentro quando um barco se vira. Vestido com o fato de sobrevivência obrigatório em alto mar, Tony sabia que podia aguentar três dias, no máximo. Não tinha água nem comida e estava imerso num mar gelado. Fumador inveterado, teve momentos em que o único desejo era fumar um cigarro antes de morrer e eis que ao segundo dia se lembrou que um dos rapazes que ajudaram a construir o barco fumava muito e guardava o maço de tabaco num reforço da quilha.
 
Tony fez esforços sobrehumanos para chegar a esse esconderijo no barco e quando estendeu o braço e procurou com a mão gelada e trémula no interior, encontrou um maço com três cigarros e … um isqueiro secos! Mais tarde contou como geriu esses cigarros e como se aguentou cinco dias sem morrer e esta história, que é real e emocionante, é apenas uma das que podem ser contadas a bordo deste Maxi Catamarã. 

 

publicado por Laurinda Alves às 11:12
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De Telma a 4 de Outubro de 2008 às 19:37
Cara Laurinda Alves:

Não sei por onde começar. Preciso de ajuda para "levantar" a minha mãe. E pensei em si. Gostava de lhe enviar um email ou carta. Sei que deve receber milhares... mas preciso de enviar este pedido e esperar que Deus faça o melhor e o que nos estiver destinado.

Existe algum email para o qual posso enviar?

Peço desculpa por estar a "tristear" o seu Blog que é tão fresco e cheio de transparências vividas.

Um beijinho e Obrigada.

Telma
De Laurinda Alves a 4 de Outubro de 2008 às 20:38
Telma, não só não 'tristeia' o meu blog como lhe dá mais profundidade e realismo. O facto de eu ser uma pessoa com inclinação para a alegria e embora cultive uma atitude positiva não quer dizer que sofra menos do que os outros ou que escape às dores que todos atravessamos. Muito pelo contrário. Acontece que a maior e melhor herança que recebi da minha família (está no ADN, é património genético portanto) foi esta de um espírito construtivo associado a uma atitude positiva mas sempre realista, de quem não esconde nem foge, nem doura a realidade. Por tudo isto e para não devassar a intimidade do meu mail, pedia-lhe a si que me mandasse o seu mail. Como os coments do meu blog são moderados por mim, só eu é que tenho acesso a essa informação. Pode ficar descansada! Manda-me o mail? Obrigada. Um abraço
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